A suspensão da Política Nacional de Educação Especial de 2020 pelo STF

Fachada do STF em foto preto e branco
Fachada do Supremo Tribunal Federal (STF) / Crédito: Jessica Mendes

Texto publicado originalmente pela plataforma JOTA

Por: Ana Cláudia M. de Figueiredo

UMA ESPERANÇA PARA A EDUCAÇÃO INCLUSIVA

O Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) confirmou, por maioria, na última sexta-feira, 18, a decisão do Relator da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 6590, Ministro Dias Tofolli, de determinar a suspensão do Decreto nº 10.502/2020 que, ao instituir a Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida (PNEE de 2020), designou espaços segregados para o atendimento educacional de pessoas com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades. 

O Relator concedeu a medida cautelar requerida na ADI proposta pelo Partido Socialista Brasileiro - PSB Nacional, por considerar que a PNEE de 2020 poderia “fundamentar políticas públicas que fragilizam o imperativo da inclusão” desses estudantes na rede regular de ensino e por entender que a proximidade do início de um novo período letivo poderia “acarretar a matrícula de educandos em estabelecimentos que não integram a rede de ensino regular, em contrariedade à lógica do ensino inclusivo”.

Embora essa decisão não seja definitiva, é especialmente relevante por traduzir o entendimento de nove dos 11 Ministros daquela Corte, de que “o Brasil internalizou, em seu ordenamento constitucional, um compromisso com a educação inclusiva, ou seja, com uma educação que agrega e acolhe as pessoas com deficiência [...] no ensino regular, ao invés de segregá-las em grupos apartados da própria comunidade”. Entendeu também o STF que o paradigma da educação inclusiva “é o resultado de um processo de conquistas sociais que afastaram a ideia de vivência segregada das pessoas com deficiência [....] para  inseri-las no contexto da comunidade”.  

O Ministro Luís Barroso acompanhou o voto do Relator, ressalvando a possibilidade de revisitar, por ocasião do julgamento do mérito da ação, a questão da educação de pessoas com deficiências que afetam a comunicação, em face da defesa, por parte de algumas entidades, de que escolas bilíngues são adequadas para surdos que utilizam a Língua Brasileira de Sinais – LIBRAS. 

O Ministro Marco Aurélio, que foi acompanhado por Nunes Marques, divergiu do Relator, por entender que a ação direta de inconstitucionalidade não seria a via adequada para impugnar o Decreto nº 10.502/2020. Isso porque esse ato normativo não teria inovado a ordem jurídica, tendo se voltado a regulamentar a Lei nº 9.394/1996 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional) e a Lei nº 13.146/2015 (Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência). Concluiu que, devendo a subsistência, ou não, do ato ser resolvida no campo da legalidade, seria incabível a atuação do Supremo.

O comando de suspensão concorreu, desde a decisão monocrática, para minimizar o processo de exclusão que já se materializava em diversos casos por todo o Brasil. A decisão do Plenário do STF atende os princípios da dignidade humana e da não discriminação e as expectativas de significativa parcela da sociedade civil que, bem articulada, manifestou sua irresignação quanto ao Decreto nº 10.502/2020 em reportagens, artigos, manifestos, cartas públicas, notas de repúdio, notas técnicas e mobilizações sociais amplas. No Congresso Nacional essa irresignação foi evidenciada na apresentação de mais de uma dezena de Projetos de Decretos Legislativos (PDLs) para sustar os efeitos do Decreto e, no âmbito do Judiciário, no ajuizamento da ADPF 751 e da Reclamação 44591, além da ADI 6590. 

Não obstante os efeitos positivos da conclusão do voto prevalecente na ADI-MC 6590, alguns trechos da fundamentação poderão gerar a fragilização, que se pretendeu evitar, do imperativo da inclusão educacional de alunos com deficiência. Esses trechos são aqueles em que se reconhece, com base no artigo 208, III, da CF, que a inclusão dos estudantes com deficiência na rede regular de ensino “se dará ‘preferencialmente’”, com “absoluta prioridade”. Com isso admite-se, ainda que em caráter excepcional, que esses estudantes sejam matriculados em escolas ou classes especializadas, em afronta aos itens 1 e 2 do artigo 24 da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD), que impõem aos Estados Partes o dever de garantirem um sistema educacional inclusivo do qual as pessoas com deficiência não sejam excluídas sob alegação de deficiência. 

A interpretação sistemática da Constituição Federal e da CDPD a respeito do tema, considerando-se aquele e outros preceitos da CF e esse e outros dispositivos da Convenção, não autoriza exceção ao direito de pessoas com deficiência estudarem em escolas do sistema regular de ensino, com os apoios que se fizerem necessários ao seu desenvolvimento e aprendizagem. São exemplos de tais apoios aqueles referidos no Decreto nº 5.626/2005, que determina às instituições federais responsáveis pela educação básica que garantam a inclusão de estudantes surdos ou com deficiência auditiva, por meio da organização de escolas e classes de educação bilíngue, “abertas a alunos surdos e ouvintes”.

A compreensão quanto à inadmissibilidade de exceção ao direito à educação é externada pelo Comitê sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência – que realiza, no âmbito da Organização das Nações Unidas, o monitoramento das obrigações assumidas pelos Estados partes na CDPD – no Comentário Geral nº 4 (2016), sobre o direito à educação inclusiva previsto no artigo 24 da CDPD, e no Comentário Geral nº 6 (2018). Esse último estabelece, acerca desse tema, que “os modelos de educação segregada, que excluem os estudantes com deficiência da educação geral e inclusiva, por causa de sua deficiência, infringem os artigos 5, parágrafo 2, e 24, parágrafo 1 a), da Convenção”.

Acrescentamos que a garantia de educação básica obrigatória e gratuita dos 4 (quatro) aos 17 (dezessete) anos (art. 208, I) não se confunde com a garantia de atendimento educacional especializado (art. 208, III), que é, nos termos dos artigos 4º, inciso III, da LDB e 3º do Decreto nº 7.611/2011, transversal a todos os níveis e etapas da educação escolar nacional e tem natureza complementar ou suplementar. Considerados esses preceitos, é impositivo entender que o advérbio “preferencialmente”, estabelecido no inciso III do art. 208 da CF, refere-se ao atendimento educacional especializado – que pode, excepcionalmente, ocorrer em instituições especializadas – e não à educação escolar (níveis básico e superior), que deve acontecer necessariamente na rede regular de ensino (art. 208, I), “sem discriminação e com base na igualdade de oportunidades” (CDPD, artigo 24.1). 

Entender que o advérbio “preferencialmente” vincula-se à educação escolar – e não ao atendimento educacional especializado – importaria em desconsiderar diversos princípios e preceitos constitucionais, especialmente os previstos nos artigos 3º, IV, 5º e 227 da CF e  3, 5 e 24 da CDPD.  Implicaria ainda subverter toda a lógica que sustenta a inclusão escolar no Brasil, porque permitiria que, ante a ausência de acessibilidade nas escolas comuns, a escolarização de pessoas com deficiência pudesse ocorrer apenas prioritária ou preferencialmente no âmbito da educação escolar, em nítida desconsideração dos citados princípios e normas. O direito à educação garantido constitucionalmente não pode ser limitado  ao acesso ao atendimento educacional especializado, sob pena de não se efetivar. 

Oportuno destacar que ressalvas à educação inclusiva, como a constante do Decreto nº 3.298/99, citada no voto condutor – em que se previu o encaminhamento de estudantes a escolas ou classes especiais em casos excepcionais –, não foram recepcionadas pelos princípios e regras da CDPD, notadamente pelos artigos 3, 5 e 24. Compreensão similar aplica-se a disposições da Declaração de Salamanca referidas na fundamentação, como a que estabelece “matrícula compulsória” de pessoas com deficiência quando “capazes de se integrar na rede regular de ensino”, de modo semelhante a disposições do Decreto nº 10.502/2020.      

Instado, a propósito, a se manifestar sobre a previsão, na PNEE de 2020, de matrícula de pessoas com deficiência – a par de outras – em instituições especializadas nas hipóteses que define, o Escritório Regional para a América do Sul do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) afirmou que, “[P]ara efetiva implementação do artigo 24, deve ser proibida a exclusão das pessoas com deficiência do sistema geral de ensino, inclusive por meio de quaisquer disposições legislativas ou regulamentares que limitam sua inclusão”.  Na mesma linha, a decisão proferida na ADI 5357. 

A suspensão cautelar da PNEE de 2020 despertou na sociedade a esperança de que, ao julgamento do mérito, a Suprema Corte brindará o Brasil com uma decisão que, em homenagem aos direitos humanos e aos princípios da dignidade humana e cidadania, reconhecerá o direito de todos os alunos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades, sem exceções e com equalização de oportunidades, estudarem em escolas comuns, em que a complexidade humana é reconhecida e as diferenças entre as pessoas são valorizadas como parte de um mundo plural e diverso.

ANA CLÁUDIA M. DE FIGUEIREDO – Advogada e ex-assessora de Ministro no Supremo Tribunal Federal e Tribunal Superior do Trabalho. Graduada em Letras e Direito pelo UniCEUB e pós-graduada em Direito do Trabalho e Processo do Trabalho pela Universidade Cândido Mendes-RJ. Vice-Presidente da Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down e Conselheira no CONADE