Aspas nunca mais
Texto publicado originalmente no jornal Folha de S. Paulo.
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08/09/2021 - Por Claudia Werneck
Decidi não usar mais aspas. Não me refiro às aspas que utilizamos para delimitar trechos originais que estejamos citando. Falo daquelas que aplicamos, por escrito e em especial com as mãos, para sinalizar uma posição —cautela?, ironia?, respeito?— sobre uma expressão ou uma palavra nossa mesmo.
Não é simples. Aspas têm sido úteis no decorrer da minha vida. E, imagino, na de inúmeras pessoas também. Na escola, ao usá-las pela primeira vez numa redação, provoquei até emoção na professora. Ganhei elogios. Coisa que nunca se esquece.
Apenas nos últimos dias ecoou dentro de mim um alerta sobre o uso das aspas, e foi a partir da fala do ministro da Educação, Milton Ribeiro, numa entrevista na TV sobre inclusão. Só então me dei conta de que esse sinal gráfico em forma de pequenas alças —como as aspas são descritas nos dicionários— é de uso arriscado, enganoso e potencialmente danoso. Seu uso, hoje deduzo, não é tão inofensivo.
Utilizar aspas em uma palavra ou expressão não significa perdão ou redenção. É falso, também, dizer que amenizam o próprio conteúdo ou impacto dessas expressões. Ao contrário, todo pensamento escrito, sinalizado ou falado “entre aspas” vale mais ainda, e por duas razões.
Primeiro: usar aspas é uma escolha consciente. Não decidimos abrir aspas pela ameaça de um revólver na cabeça, por chantagem emocional ou financeira. Palavras e expressões entre aspas são selecionadas com autonomia e independência e, assim, refletem e registram opiniões e intenções.
Segundo, ao usar aspas, a pessoa faz uma denúncia de si mesma. Algo do inconsciente humano vive precisamente entre o abre aspas e o fecha aspas. Ao utilizá-las, revelamos um pouquinho do que habitualmente escondemos ou contamos só pela metade, devagarinho, de modo a ir calibrando a reação da sociedade, de quem amamos, qualquer pessoa ou grupo que nos afete.
Quando o ministro da Educação declarou nas mídias sociais que “crianças com deficiência atrapalham”, fez questão de fazer o sinal de aspas com os dedos de ambas as mãos (no “atrapalham”).
Possivelmente, pensava que as aspas iriam amadrinhar seu pensamento, até porque acrescentou que assim se expressava com muito cuidado.
Foi então que me debrucei sobre as aspas, vasculhando dicionários para saber como as definem, tanto as aspas duplas quanto as simples —estas são utilizadas quando a citação já está dentro de outra citação, que, portanto, já tem aspas. Além de distinguir trechos de documentos autorais, títulos, nomes comerciais, as aspas servem para salientar palavras ou expressões especiais, sentidos figurados, gírias etc. Ou seja, não escondem nada: têm, por natureza, revelar, consagrar —em certo sentido que procuramos escolher, controlar ou enfatizar, mas que escolhemos. Aspas não são disfarces.
Voltando ao ministro da Educação, gostaria que ele se unisse a essa reflexão. Quando falamos que alguém atrapalha, o que queremos dizer exatamente? Que sabemos que essa não é a palavra adequada mas pedimos antecipadamente desculpas por usá-la? Ou que estamos usando cientes que ela tem implicações perigosas? Mas fazer isso é afirmar essas implicações. Como acreditar que as aspas podem ser usadas para não dizer alguma coisa que escolhemos dizer?
Nessa aventura pelos dicionários decifrando as aspas, encontrei algumas expressões interessantes relacionadas a elas que desconhecia. Escolhi algumas para terminar este artigo.
Fico de “aspa torta” (mal-humorada e zangada) quando o conceito de educação inclusiva é tratado de modo inconsistente, mas nem por isso vou desejar que as pessoas que não concordam comigo “finquem as aspas no inferno” (morrer, referindo-se a inimigos e desafetos). Prefiro, ao contrário, “bater aspas” (andar lado a lado esclarecendo dúvidas) e seguir defendendo a educação pública inclusiva na mesma sala de aula para toda criança, sem exceção. Não é à toa que as citações são entre aspas! Direito autoral preservado até o além.