Corpo pequeno, nunca inferior
Texto publicado originalmente em HuffPostBrasil
Por: Claudia Werneck
"No Brasil e no mundo, a infância precisa de mais aliados."
O mundo adulto é indolente. Adia entender e aceitar a legitimidade do lugar da infância na perspectiva dos direitos. Crianças têm sido um alvo tradicional de todo tipo de discriminação e violência. Mas o que leva os corpos humanos grandes a agredir os corpos humanos pequenos? Ter um corpo menor, indefeso e em fase peculiar de desenvolvimento não é delito, nem justifica sofrer delitos. O dever de cuidá-lo para que se desenvolva com dignidade não dá à família, à sociedade e ao Estado o direito de possuí-lo.
A infância tem vulnerabilidade e importância intrínsecas; por isso é que precisa do mais absoluto, prioritário e incondicional amparo para se desenvolver. Convictos de que crianças são o principal sujeito de direitos do planeta, todos os países, com exceção dos Estados Unidos, assinaram, no ano de 1990, a Convenção Internacional sobre os Direitos da Infância da ONU, que solicita prioridade na proteção da infância contra todas as formas de discriminação ou punição, princípio também adotado pelo Brasil no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que regulamenta o Artigo 227 da Constituição. De fato, todo cuidado é pouco num país onde a infância ainda cresce cercada de estigmas e em risco crescente, também por causa da Covid-19.
Não nos recordamos da sensação de viver em um corpo recém-nascido e dependente de pessoas adultas para sobreviver. Quem hoje desfruta de autonomia e independência para se alimentar, movimentar-se e tomar decisões parece ignorar qualquer vestígio e consciência de sua própria infância. Essa arrogância de corpos humanos grandes sobre corpos humanos pequenos, cotidianamente explícita, manifesta-se também nas leis e nas políticas públicas. Interfere negativamente no que é a maior responsabilidade das pessoas e instituições: a proteção social da infância, e com equidade. O Conjunto Infância é necessariamente múltiplo e infinitamente diferenciado. O atendimento às suas necessidades específicas deve sê-lo também. Contudo, ainda somos uma sociedade “desligada” quando se trata de garantir direitos de corpos humanos com poucos anos de vida.
Há alguns anos, desembarcando no Brasil de uma viagem internacional, deparei-me com a seguinte situação. Na esteira rolante repleta, a óbvia quantidade de personagens, brinquedos e símbolos familiares indicava um ou mais vôos vinha da Disney. Uma cena envolvendo o que parecia ser uma família - mulher, homem e três crianças - chamou minha atenção. O único menino, de uns sete anos, fazia bagunça, corria pra lá e pra cá, não queria ficar próximo à esteira. O pai gritava bem alto e repetidamente: “Para de correr, senão vai apanhar aqui mesmo”. Quem estava ali, ouvindo esses berros, presenciou em tempo real uma ameaça de possível violência física e moral contra a criança. Entretanto, ninguém se manifestou. Nem eu.
Mas…. E se este homem estivesse ameaçando uma pessoa adulta, aos berros? Acharíamos normal? Não. Quero acreditar que reagiríamos na tentativa de evitar a agressão, mesmo que esta pessoa adulta fosse da própria família - por exemplo, a mulher que estava com ele, supostamente a mãe da criança, sua esposa. Ao menos encontraríamos um modo de deixar claro para o potencial agressor a nossa vigilância, talvez chamando a atenção da equipe de segurança daquele recinto. Imagino que nos mobilizaríamos, enfim, para evitar qualquer possibilidade de violência. E, caso ficasse evidente que a ameaça estava relacionada a discriminação ou a preconceito por gênero, sexo, cor de pele, deficiência ou religião, talvez as redes sociais fossem acionadas, sensibilizando o ativismo político, os meios de comunicação e a opinião pública.
É inquietante e doloroso. Ameaças públicas de pessoas adultas contra crianças dificilmente geram desconforto, preocupação e condutas em escala suficiente para impulsionar a vontade de protegê-las a qualquer custo. A mesma sociedade que naturaliza e perdoa um corpo adulto que agride um corpo pequeno, e mais frágil - independentemente de vínculos de afeto - não quer ver um corpo adulto agredir outro corpo adulto.
Pessoas vivendo em corpos humanos grandes e maduros sentem que valem mais para a sociedade do que pessoas vivendo em corpos em desenvolvimento, como bebês e crianças? Tudo indica ser este o pensamento equivocado que nos guia.
Crianças não são propriedades do mundo adulto para seu deleite, afeto, cuidados e preocupação. Pela cena do aeroporto, pareceria que sim. Nela prevaleceu a ideia de que o corpo humano grande, por cuidar daquele corpo humano pequeno, seria também seu proprietário. A cena continha alguma ilegalidade ou violação de direitos? Avalio que sim, seguindo o disposto no Art. 5º do ECA: “nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido na forma da lei qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais”.
No Brasil e no mundo, a infância precisa de mais aliados. Se muitos são os direitos fundamentais ameaçados durante a pandemia da covid-19, imaginemos os agravos à infância, que além de enfrentar seu próprio demérito etário ainda traz pra si todas as vulnerabilidades, riscos e danos vividos por suas famílias?
Minha percepção é que a infância deveria ser adotada pelos movimentos de diversidade e inclusão. Há, nesses grupos, força e desejo para incorporar a agenda da infância? Se houver, presenciaremos um exercício duplo: além de absorver a infância como assunto de diversidade, será necessário também dissecar os temas de diversidade na perspectiva da infância, numa interseccionalidade permanente. Interessante observar que, ao contrário de tantos outros aspectos ligados à questão da diversidade humana, é fácil definir o que é a infância, se adotarmos os critérios da legislação internacional. É a fase cronológica da vida que reúne pessoas de zero a 12 anos incompletos. Não depende de autodeclaração, como gênero ou raça.
A espécie homo sapiens nasce em um corpo pequeno e indefeso, mas nunca inferior. O amor não justifica tudo, e os direitos são fundamentais. Desejar verdadeiramente o bem maior para uma criança, cuidá-la, reduzir suas fontes de estresse tóxico e fortalecer suas habilidades cognitivas é fundamental. Pode parecer muito, mas ainda é muito pouco. “Cresçam e apareçam” é uma frase do passado.