Qual o trabalho que você leva para casa?
Texto publicado originalmente em O Globo
Por: Claudia Werneck
Na Covid-19, o trabalho entrou na intimidade do lar. Ao deslocar rotinas e desequilibrar a balança entre as vidas profissional e privada, o isolamento intrafamiliar escancarou, para as crianças cujas mães e pais, quase que de repente, passaram a trabalhar em casa, sigilos bem guardados pelo mundo adulto. Entre eles, o fato de que muitas pessoas não gostam do seu trabalho. E assim, uma novíssima geração de meninas e meninos que apenas começa a viver foi envolvida por angústias típicas do ciclo laboral. Qual é a concepção de trabalho — também como direito humano e fundamental — que estamos levando pra dentro de casa?
Mamãe vai trabalhar. Papai vai trabalhar. Até a Covid-19, o verbo “trabalhar” se bastava como intransitivo. Expressava uma ação completa e não pedia complemento. Até que veio o isolamento social. Com pai e mãe como casal — ou isoladamente — se organizando para exercer suas profissões em casa, tem sido inevitável para as crianças observarem nas pessoas adultas da família sentimentos e reações antes (aparentemente) imperceptíveis. Agora que já sabem o quanto a vida profissional pode magoar, irritar, cansar, sem ser edificante ou prazerosa, farão muitas perguntas. Teremos que contar a verdade. O verbo “trabalhar”, no sentido deste artigo, pode até continuar intransitivo, mas não é mais o dono absoluto da frase. A oração cresceu e o sujeito se complexificou. Vai precisar da ajuda de adjuntos adverbiais ou predicativos.
“Sair pro trabalho”, expressão já desconfigurada, pode ficar obsoleta. O teletrabalho veio para ficar. Não fez cerimônia ou bateu na porta. Nem se preocupou em manter as aparências. Simplesmente entrou, pois já tinha cópia da chave. E se deu ao direito de mudar os móveis de lugar em busca de um sinal de internet melhor. Quartos infantis viraram escritórios. Mobílias coloridas se amontoaram de papel ou foram soterradas por impressoras.
E do que será que as crianças mais se ressentem? Da privacidade perdida ao terem sido reveladas, por descuido, em seus pijamas? Ou quem sabe do relance flagrado, durante uma reunião remota, no qual pediam por mais atenção? Do esforço para aceitar que, mesmo com pai e mãe mais tempo por perto, não podem desfrutar, na mesma proporção, de suas presenças? Das impaciências repentinas? Certamente, as crianças vão notar que há algo de sério nessas atividades que não entendem — algo sagrado, dentro do igualmente sagrado espaço do lar. Mas isso será o suficiente para manter, na percepção delas, a dignidade do ato de trabalhar?
Qual é a concepção de trabalho que cada família oferece para as suas crianças? Trabalho com propósito? Trabalho por trabalho? Trabalho por remuneração, ainda que sem prazer? Trabalho como castigo? Trabalho para sobreviver? Trabalho só porque precisa? Ou trabalho como realização profunda e existencial?
Há esforço por parte de inúmeras famílias em organizar horários e atividades em tempos de pandemia. Talvez dê certo, até o mercado chegar fora da hora combinada. O planejamento vira terra de ninguém. As crianças acompanham o processo e sua confusão. Quem vai parar o que está fazendo para lidar com um imprevisto? O que vale mais na concepção de trabalho para aquele casal? Ter uma remuneração melhor, mais estabilidade ou ser funcionária de uma grande empresa? São infindáveis ajustes para compatibilizar agendas laborais, afetivas e higiênicas no sentido mais amplo da palavra. Em cada lar há um jogo ou gincana em curso. Para as crianças, é como se simplesmente estivessem passando para uma nova fase do mesmo jogo: a busca da paz, do aconchego, da diversão, do afeto e da segurança em família. Na fase anterior, pai e mãe trabalhavam. Agora, elas se sentem trabalhando também.
Trabalhar já era verbo conjugado na prática, infelizmente, por milhões de meninos e meninas de famílias de baixíssima renda. E, nestes casos, o isolamento pela Covid-19, além de potencializar esse agravo ao desenvolvimento infantil, fortaleceu outros, propiciando todo tipo de violência doméstica, em qualquer família, sem distinção de classe social, embora a dificuldade de se manter com renda neste momento histórico aumente o risco das pessoas adultas descontarem nas crianças suas doenças, carências, preocupações e descontroles.
A Covid-19 terá acabado com a fantasia, comum na população infantil mais protegida, de que todo trabalho é justo. A consciência do que ainda falta para o exercício desse direito só cresce. Até o confinamento, as famílias vinham evitando — na medida do possível — revelar para a prole a verdade sobre os desafios de se trabalhar no que se gosta, de ser atendido nos direitos trabalhistas, de se oferecer direitos trabalhistas, e de associar tudo isso à dignidade, qualidade de vida e remuneração para educar quem chega na família e também pra quem envelhece ou fica doente, incluindo a saúde de quem está no auge de sua força de trabalho.
Esta ilusão infantil do trabalho necessariamente bom acabou para algumas crianças. Assim como o mistério em torno da Páscoa ou do Natal também se esvai em algum momento. E dói, quando acontece antes da hora. Será que, a partir de agora, as famílias vão incorporar conversas sobre o sentido e o valor do trabalho nos almoços de domingo? Já deveríamos ter comentado com elas, na hora de inventar estórias, sobre os dilemas que o Coelhinho e o Papai Noel enfrentam para exercer seus ofícios, ainda que devotos? Quem sabe dizer, por exemplo, que os dois andam cansados de entregar ovos e presentes, que têm outros sonhos, ideias, que gostariam de prospectar diferentes possibilidades de renda, de satisfação e de contribuição para o país? Não deu tempo. Mas ainda que tivéssemos sabido com muita antecedência que o isolamento social viria, e por tanto tempo, talvez não tivéssemos tido ânimo de mudar a lenda do trabalho feliz — estávamos muito ocupados, trabalhando.
Claudia Werneck é jornalista e escritora