Posicionamento da Rede-In sobre o retorno às aulas dos estudantes com deficiência e o novo parecer do CNE
“A educação constitui direito da pessoa com deficiência, assegurados sistema educacional inclusivo em todos os níveis e aprendizado ao longo de toda a vida...”.
Lei Brasileira de Inclusão, Art. 27
Em 2018, a inclusão escolar dos estudantes com deficiência, transtornos globais de desenvolvimento e altas habilidades/superdotação1 atingiu um patamar histórico. De acordo com o Censo Escolar, 90% desses alunos estavam matriculados em salas de aula comuns, desfrutando do convívio com o restante dos estudantes. Essa estatística é considerada extremamente avançada, mesmo quando comparada a redes de ensino de países que se destacam mundialmente no campo da equidade e do direito à educação.
O ano de 2020 foi marcado pela grave disseminação mundial da covid-19, doença causada pelo novo coronavírus Sars-CoV-2, acompanhada de medidas de isolamento social que resultaram em uma migração do ensino presencial para o ensino a distância. A instauração repentina e sem oportunidade de planejamento para esse modelo de ensino trouxe consigo inúmeros desafios para a educação inclusiva, tais como os diferentes contextos de acesso à infraestrutura, a dificuldade de manutenção de vínculos afetivos e de práticas de habilidades sociais, disponibilização de materiais didáticos acessíveis e tecnologias assistivas, dificuldade de engajamento e motivação, entre outros. Ainda estamos imersos na discussão de como superar esses desafios para que não haja retrocesso nas conquistas do direito à educação inclusiva.
Contudo, em meados de junho de 2020, as três esferas da federação começaram a pautar um eventual retorno às aulas presenciais. Nesse contexto, o Conselho Nacional de Educação (CNE) publicou, em 7 de julho, o parecer CNE/CP no 11/2020, que ainda aguarda a homologação do Ministério da Educação, com o objetivo de estabelecer recomendações para as redes de ensino brasileiras quanto à reabertura das escolas. Em seu item 8, dedicado à modalidade de Educação Especial, o parecer orienta que “os estudantes da Educação Especial devem ser privados de interações presenciais” e complementa que “enquanto durar a situação de pandemia, somente deverão retornar às aulas presenciais ou ao atendimento educacional especializado por indicação da equipe técnica da escola, ou quando os riscos de contaminação estiverem em curva descendente”.
O referido parecer viola as diretrizes traçadas pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, aprovada no Brasil pelo Decreto Legislativo 186, de 9 de julho de 2008, e incorporada à Constituição brasileira com status de Emenda Constitucional, assim como os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, o Plano Nacional de Educação e a Lei Brasileira de Inclusão, por excluir os estudantes justamente e unicamente por sua condição de deficiência.
Tendo isso em vista, consideramos ser relevante que a Rede Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência - Rede-In, por sua contribuição à área da educação inclusiva, dialogue com o poder público para discutir as medidas propostas no parecer com o objetivo de que seja revisado antes de ser homologado pelo Ministério da Educação. Acreditamos que esse diálogo deve ser baseado em evidências e assumir como premissas:
- A decisão de retomada das aulas presenciais deve ser baseada em evidências científicas de que o retorno é seguro, considerando todos os estudantes, inclusive com deficiência, transtornos globais de desenvolvimento e altas habilidades/superdotação;
- O alinhamento com as diretrizes estabelecidas pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, pelos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, pelo Plano Nacional de Educação e pela Lei Brasileira de Inclusão. Todos esses documentos adotam a definição de pessoa com deficiência na perspectiva social. Nesse sentido, as instituições de ensino devem focar sua atenção na eliminação de barreiras e na promoção da acessibilidade;
- A garantia de que todos os estudantes exerçam seu direito à aprendizagem em ambientes heterogêneos, que promovam o convívio e a interação com a comunidade escolar e, assim, tenham a oportunidade de desenvolver o máximo de seu potencial;
- A indução dos sistemas e redes de ensino para que acolham os estudantes público-alvo da Educação Especial nas escolas comuns do ensino regular, ofertando o atendimento educacional especializado quando necessário, mesmo no cenário de pandemia e
- O cumprimento do direito das crianças e adolescentes de contato, convívio e interação com as demais. Lembrando que esta convivência é positiva para todos os estudantes, professores e demais atores da comunidade escolar, na medida em que impulsiona reflexões sobre a inclusão na prática educativa.
Com o objetivo de subsidiar o diálogo proposto, apresentamos adiante algumas informações relevantes:
- Pesquisa realizada pelo Ministério da Educação (MEC) em 20152 revela que a educação inclusiva é entendida como importante instrumento no enfrentamento das diversas formas de discriminação, disseminando o acolhimento e a solidariedade no ambiente escolar. Também identificam os benefícios da inclusão, ressaltando os recursos e serviços, como o atendimento educacional especializado, disponibilizados na escola comum para a promoção da autonomia e independência dos estudantes com deficiência.
- A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência reconhece que a deficiência “resulta da interação entre pessoas com deficiência e as barreiras, advindas das atitudes e do ambiente, que impedem a plena e efetiva participação dessas pessoas na sociedade em igualdade de oportunidades com as demais”. Declara também, em seu artigo 24, item 2, “a” que, “para a realização desse direito, os Estados Partes assegurarão que “as pessoas com deficiência não sejam excluídas do sistema educacional geral sob alegação de deficiência e que as crianças com deficiência não sejam excluídas do ensino primário gratuito e compulsório ou do ensino secundário, sob alegação de deficiência”.
- Nota informativa publicada pela Unesco indica que a retomada das aulas deve considerar os seguintes fatores: prontidão do sistema – avaliar a disponibilidade de pessoas, infraestrutura, recursos e capacidade de retomar as funções – e que deve consultar os atores interessados.
- O parecer do CNE/CP no 11/2020 ensejou a manifestação de diversas instituições3, no sentido de que as diretrizes apresentadas têm conteúdo discriminatório e violam os direitos das crianças e adolescentes com deficiência.
- Em artigo no tema, a especialista em direitos das pessoas com deficiência, Ana Cláudia M. de Figueiredo, afirmou que, “se a escola não é segura para os estudantes com deficiência, ‘por razões supracitadas de maior vulnerabilidade’, não pode ser considerada segura, da mesma forma, para estudantes sem deficiência, professores, coordenadores, gestores e outros trabalhadores, porque, em um contexto no qual os níveis de contágio ainda não começaram a decrescer, todos serão vulneráveis. A propósito, a restrição ao retorno às escolas pautada na deficiência ou autismo caracteriza capacitismo, que é a discriminação ou o preconceito contra pessoas com deficiência. Eventual limitação, caso mantida a orientação de retomada das aulas presenciais, deveria estar pautada não na deficiência, mas na avaliação, aplicável a todos os estudantes, com base em características inerentes a determinado grupo de risco.”4
- A pesquisa “Protocolos sobre Educação Inclusiva durante a Pandemia da Covid-19: Um sobrevoo por 23 países e organismos internacionais”, publicada pelo Instituto Rodrigo Mendes, aponta que o processo de tomada de decisão neste contexto precisa incorporar uma abordagem intersetorial e pautada pela preservação de direitos e pela escuta dos diversos atores da comunidade escolar. A pesquisa também reforça o fato de que não existe correlação automática entre deficiência e risco. Consequentemente, estudantes com deficiência devem ter o direito de retornar juntamente com os demais, no momento em que for seguro para todos.
Acreditamos que a decisão pelo momento do retorno presencial deve ser baseada em informações científicas acerca do risco de contágio e transmissão da covid-19. As dificuldades práticas enfrentadas pelas redes de ensino para cumprir os protocolos sanitários devem ser consideradas. Um eventual retorno precoce pode significar grave risco à saúde e à vida de todos os estudantes.
Uma vez tomada a decisão pelo retorno presencial, todos os estudantes deverão retornar juntos. É preciso ressaltar que a pandemia e as dificuldades práticas que ela impõe não podem servir de pretexto para excluir estudantes com deficiência da escola no retorno às aulas presenciais. A preservação do direito à educação deve ser a premissa prioritária para a criação de quaisquer medidas e procedimentos. Gestores públicos, diretores de escolas e educadores têm o papel de cuidar para que tais estudantes não sejam desmotivados ou deixem de estudar. A discriminação injusta viola os direitos humanos e fundamentais dos estudantes com deficiência. Por isso, entendemos que o parecer do CNE precisa ser revisto no que diz respeito à Educação Especial.
Seguimos abertos ao diálogo para a construção coletiva de possíveis soluções para o enorme desafio que estamos vivendo no contexto atual. Entendemos que as decisões devem buscar viabilizar o direito à educação de todos, sem colocar em risco a saúde e vida dos estudantes e sem deixar ninguém para trás.
Rede Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência - Rede-In*
*A Rede-In é composta por:
Federação Brasileira das Associações de Síndrome de Down – FBASD**;
Instituto Rodrigo Mendes**;
Escola de Gente - Comunicação em Inclusão**;
Associação Nacional de Membros(as) do Ministério Público em Defesa das Pessoas com Deficiência e Idosos – AMPID;
Instituto Jô Clemente – IJC;
Rede Brasileira do Movimento de Vida Independente – Rede MVI;
Associação Brasileira por Ação pelos Direitos das Pessoas com Autismo – ABRAÇA;
Associação de Pais, Amigos e Pessoas com Deficiência, de Funcionários do Banco do Brasil e da Comunidade – APABB;
Coletivo Brasileiro de Pesquisadores e Pesquisadoras dos Estudos da Deficiência – MANGATA;
Associação Brasileira de Ostomizados – ABRASO;
Mais Diferenças – Educação e Cultura Inclusivas;
Organização Nacional da Diversidade Surda – ONAS;
Visibilidade Cegos Brasil;
Associação Nacional de Emprego Apoiado – ANEA;
Associação dos Familiares Amigos e Portadores de Doenças Graves – AFAG;
Coletivo Feminista Helen Keller;
Coletivo de Mulheres com Deficiência do DF;
Amankay Instituto de Estudos e Pesquisas.
**Redatores da nota.
1 Público-alvo da Educação Especial (MEC)
2 A Escola e suas Transform(ações) a partir da Educação Especial na Perspectiva Inclusiva
3 Laboratório de Estudos e Pesquisas em Ensino e Diferença (Leped); União dos Dirigentes Municipais de Educação SP (Undime); Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência (Consed); Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos (Anadep); Associação Nacional de Membros do Ministério Público de Defesa dos Direitos dos Idosos e Pessoas com Deficiência (Ampid); Ministério Público Federal (MPF - Recomendação no 28/2020, 17 de julho de 2020).
4 FIGUEIREDO, Ana Cláudia M. de (2020). “O retorno às aulas presenciais: na balança, o direito à educação, saúde e a vida”. Jornal GGN. Disponível em https://jornalggn.com.br/artigos/o-retorno-as-aulas-presenciais-na-balanca-o- direito-a-educacao-saude-e-a-vida-por-ana-claudia-figueiredo/. Acesso em 20 de julho de 2020.